Em pesquisa realizada no endereço eletrônico do Conselho Federal de Odontologia (CFO) no dia 10 de janeiro de 2021, encontramos o número de, precisamente, 339.419 cirurgiões-dentistas ativos em todo território brasileiro. Deste total, destacamos que registrados como especialistas em Odontologia Legal, observamos a seguinte distribuição: 468 cirurgiãs-dentistas (0,7%) e 337 cirurgiões-dentistas (0,6%).
Com estes dados é possível desdobrarmos alguns raciocínios que se mostram fundamentais para compreendermos o momento atual do ativismo jurídico na Odontologia. O número crescente de cirurgiões-dentistas atuando no Brasil nos coloca na posição do país com o maior número de dentistas no mundo. Considerando o último levantamento apresentado pelo IBGE em agosto de 2020, a população brasileira é de 211,8 milhões de habitantes, o que revela uma proporção de 624 habitante por dentista. Em outras palavras, são 1602 dentistas por 1 milhão de habitante, enquanto, para Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido, observamos respectivamente, 780, 610 e 430.
Confira abaixo uma análise sobre o cenário do cirurgião-dentista e as ações judiciais na esfera cível.
No último levantamento sobre a quantidade de demandas judiciais relativas à saúde realizado no período compreendido entre os anos de 2008 e 2017, contemplou-se um aumento de 130%, segundo os dados da pesquisa intitulada “Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução”, elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), este estudo mostra que, no mesmo período, o número total de processos judiciais cresceu 50%.
Em outro estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entre 2005 e 2015, registrou-se o aumento de 1600% no número de processos judiciais especificamente por erro médico no país, incluindo aí, os dados relativos aos processos envolvendo a Odontologia.
Em 2017, o Brasil atingiu 26 mil processos contra profissionais da saúde por supostos erros de conduta durante os atendimentos clínicos. Esse número é alarmante, tanto em relação à proteção da saúde humana, quanto à proteção dos próprios profissionais. Devemos considerar que a abertura de um processo disciplinar ou judicial não determina se o profissional adotou uma conduta errônea. É preciso aguardar que a investigação e o julgamento sejam concluídos. No entanto, frente aos futuros pacientes e à sociedade, a imagem do profissional ficará manchada.
O número crescente de processos contra dentistas atinge os profissionais em diferentes âmbitos. Esses processos podem ser administrativos, nos Conselhos Regionais; cíveis para dirimir questões de prestação de serviços em busca de uma reparação pecuniária e, até mesmo, processos criminais, em acusações como lesão corporal ou mesmo homicídio culposo.
A litigiosidade na saúde é, incontestavelmente, volumosa e em franco crescimento. Este cenário pode ser analisado sob duas vertentes: (a) que as instituições estão funcionando e a educação está prestando um bom serviço público, formando indivíduos mais esclarecidos; ou (b) que a sociedade está voltada para o litígio e a prestação de serviços na saúde, em geral, está realmente insatisfatória.
Com o esboço destes números, torna-se imperativo, para a Odontologia Legal, o aprofundamento das pesquisas relativas aos processos judiciais cíveis, envolvendo os cirurgiões-dentistas e o seu desempenho profissional frente às diversas especialidades.
Uma das linhas de pesquisa desenvolvidas pela área de Odontologia Legal da USP – Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto é o estudo e análise de dados relativos às demandas na esfera cível, que envolvam a Odontologia, nas suas diversas especialidades e em diferentes estados e municípios brasileiros.
Os números encontrados e analisados detalhadamente, nos últimos anos, apresentam um índice crescente nas demandas judiciais contra os cirurgiões-dentistas, que independente do veredito, com certeza, causam um elevado nível de estresse emocional e em algumas situações uma perda patrimonial considerável para os colegas. Tal cenário foi observado ao estudar-se a quantidade de processos envolvendo a Odontologia em cidades do interior paulista, Araraquara, Bauru e Piracicaba. Neste levantamento foram encontrados 33 processos cíveis, partindo de 1 processo em 2014, 3 em 2015, 7 em 2016, 8 no ano de 2017 e 14 processos em 2018. Ainda deste mesmo estudo depreende-se que as especialidades odontológicas mais envolvidas nestes processos foram Prótese Dentária, Implantodontia e Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial.
Quando analisamos friamente a relação estabelecida entre o universo de cirurgiões-dentistas de um estado brasileiro, no caso o Rio de Janeiro, 15.749; e, o número de processos pesquisados no endereço eletrônico do Tribunal da Justiça do Estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2010 e 2017, 141, encontramos uma correlação baixa, apenas 0,89%. Contudo, ressaltamos que até pode ser índice considerado irrelevante, enquanto não nos atinge, pois, os valores envolvidos nestas discussões judiciais variaram de R$ 4.350,00 a R$ 241.850,00. E, estes valores podem ainda atingir somas mais vultosas, afetando em cheio o patrimônio de uma vida de dedicação à Odontologia, como observado quando o levantamento foi realizado no Estado do Mato Grosso do Sul, onde a distribuição dos valores de indenização pleiteados nos processos apresentou valor mínimo próximo de R$ 5.000,00 e máximo de R$ 600.000,00.
Já, quando nos detemos a analisar as especialidades odontológicas envolvidas nos processos de responsabilidade civil, encontramos em trabalho realizado no Tribunal de Justiça de São Paulo nos anos de 2014 a 2018, 26 processos envolvendo as especialidades de Implantodontia, Prótese Dentária e Dentística. No Estado do Mato Grosso do Sul foram pesquisados 51 processos com a Implantodontia dominando, seguida pela Ortodontia e Prótese Dentária. E, quando nos dedicamos a avaliar os números da Região Metropolitana da Grande Vitória, Espírito Santo, observamos 102 processos de responsabilidade civil, no período compreendido entre os anos de 2009 a 2017, ocorrendo, apenas uma troca de posições entre as mesmas especialidades, ficando em primeiro lugar a Prótese Dentária, depois Ortodontia e Implantodontia.
Em outros trabalhos, como o realizado nos anos de 2006 a 2015, na comarca de Londrina, Paraná ou no município de Ribeirão Preto, São Paulo, entre os anos de 1996 a 2011, descobrimos a presença de outras especialidades envolvidas nestes processos, como Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial e Endodontia.
Outro ponto a nos determos na análise de processos de responsabilidade civil na Odontologia, é a participação do especialista em Odontologia Legal no papel de perito judicial nomeado ou como assistente técnico indicado pelas partes. A análise em percentual da pesquisa realizada nas cidades de Araraquara, Bauru e Piracicaba encontrou quantidade inferior a 50% das demandas com peritos judiciais nomeados, desta porcentagem, um terço teve envolvimento de assistentes técnicos. Contudo, quando a fonte de pesquisa foi o endereço eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo nos anos de 2014 a 2018, apenas um terço, contavam com nomeação de perito e com presença de laudo. Sendo que desses profissionais, alguns eram especialistas em Odontologia Legal. No que diz respeito a contratação de assistente técnico, em apenas 15% destes processos houve sua indicação. Já na pesquisa realizada no Tribunal da Justiça do Estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2010 e 2017 destaca-se que os peritos judiciais nomeados apresentaram título de especialista, principalmente, em Endodontia, Odontologia Legal e Radiologia.
Quando consideramos a personalidade jurídica envolvida em processos de responsabilidade civil na Odontologia, na pesquisa realizada na comarca de Londrina, Paraná, identificou-se 69 processos cíveis, 28 referentes às pessoas físicas e 41 às pessoas jurídicas. Já no município de Ribeirão Preto, São Paulo, foram estudados 145 processos.
É importante frisar que à medida que a consciência na sociedade aumenta, as pessoas mudam suas expectativas em relação aos procedimentos odontológicos e seus resultados; como consequência, tal fator aumenta a probabilidade de processar os dentistas por sua má conduta. A lei é universal e aplicável a todos, porém a moralidade ou a ética podem diferir de pessoa para pessoa, portanto, um limite mínimo de ética imposto por lei deve ser um pré-requisito. A lei não deve ser uma fonte de medo ou uma obstrução na prestação de serviços profissionais, pois quando aplicada corretamente sempre traz paz e o senso de igualdade prevalece. A indenização e a punição buscam restaurar a paz, mas a ética, quando corretamente praticada ajudará a sociedade de uma maneira melhor. A Odontologia deve olhar para dentro e corrigir as más práticas e eventuais distorções, que deram uma imagem negativa a tão nobre profissão.
Diante dos resultados observados nestes levantamentos é possível constatar a necessidade dos cirurgiões-dentistas adotarem ações preventivas judiciais e gestão de risco jurídico na sua prática clínica, respeitando os limites éticos e legais, entre as quais, destacamos: adoção de documentação odontológica completa e atualizada; uso rotineiro de TCLE, contratos e autorizações para a realização de todo e qualquer tratamento odontológico; contratação de seguro profissional junto a sua corretora preferencial e manter-se atualizado.
Fica a dica!
Autores convidados: Prof. Dr. Ricardo Henrique Alves da Silva e Antônio Castelo Branco
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