O número de processos de responsabilidade profissional na Odontologia vem aumentando nas últimas décadas. Para se ter uma ideia, em 1974 houve um caso de processo contra um cirurgião-dentista enquanto que em 2012 foram registrados 1064 casos.
Assim, são necessários profissionais da área da Odontologia Legal capacitados e preparados para atuarem nos papéis de peritos e assistentes técnicos. Para o exercício dessas funções, esses profissionais devem ter o conhecimento sobre a natureza da atividade do cirurgião-dentista sob o ponto de vista jurídico.
Uma das discussões que ocorre nos processos de responsabilidade profissional na esfera civil é sobre a obrigação de meio e de resultado. Muito dessa discussão tem origem na Doutrina de Guimarães Menegale, que coloca como ideia central do seu entendimento que “a sintomatologia, o diagnóstico e a terapêutica na Odontologia são muito mais definidas e é a mais fácil para o profissional comprometer-se a curar”, defendendo a obrigação de resultado para Odontologia lá em 1939.
Nesse artigo, iremos propor uma análise da teoria de Guimarães Menegale, discutindo suas origens e validade nos dias atuais.
Primeiramente, é necessário refletir quanto a natureza da atividade odontológica e sua implicação jurídica. Para a maioria dos doutrinadores do Direito e conforme disposto de forma genérica no Código de Defesa do Consumidor (CDC), a Odontologia caracteriza-se como um serviço, isto é: atividade prestada no mercado de consumo, mediante remuneração.
Logo, o entendimento sobre o que foi combinado ou tratado entre as partes será a base da discussão sobre a pretensão indenizatória. Costuma-se, então, verificar o que consta no contrato feito, independentemente deste ser escrito ou não entre o cirurgião-dentista e o paciente.
Nesse aspecto, é importante, dentro da responsabilidade civil esclarecer se houve erro ou não por parte do profissional que justifique a obrigação de indenizar os danos causados ao paciente, requerente do processo, ou ainda se houve falha na informação, uma vez que o CDC entende a informação completa como direito do paciente, o que também poderia gerar uma indenização.
Considerando as duas causas de pretensão indenizatória nos processos na área odontológica (por falha técnica ou falha de informação), verifica-se a insatisfação dos pacientes presente em ambas. Quando não se alcança o resultado estético-funcional do tratamento, torna-se relevante a discussão sobre a obrigação de meio e resultado, sob o ponto de vista dos dois aspectos causais já citados.
A obrigação de resultado estabelece que o profissional está condicionado a atingir o fim pactuado no contrato, ou seja, atingir o resultado combinado. Muita atenção deve ser dada a publicidade existente nesta situação, o que também pode induzir à expectativa do paciente.
Contrapondo-se a esse conceito, a obrigação de meio apoia-se na conduta do profissional ao longo do tratamento, devendo esse se propor a empregar todo seu conhecimento, experiência, habilidade, criatividade e técnicas cientificamente existentes para o bem maior do paciente. Neste caso, se por ventura não atingir como resultado o que foi combinado, o profissional não é responsabilizado culposamente.
Junta-se à essa questão os chamados excludentes da responsabilidade, que são:
Dentro da esfera civil, há controvérsias entre os pensadores do Direito sobre a questão da responsabilidade dos cirurgiões-dentistas. De um lado, apoiadores da teoria de meio e de outro, os que sustentam a teoria do resultado.
Ainda, há um entendimento que a caracterização da obrigação pode ser relativa à natureza do tratamento odontológico. Carlos Roberto Gonçalves (2003), por exemplo, sintetiza que “no que tange aos cirurgiões-dentistas, embora alguns casos se possam dizer que sua obrigação é de meio, na maioria das vezes apresenta-se como obrigação de resultado”. Como exemplo de obrigação de resultado, o autor cita a “colocação de jaqueta e pivot, em que existe uma preocupação estética de parte do cliente”, porém, lamentamos que este autor não considerou (ou pelo menos não declinou em seu texto) as possíveis variáveis que permeiam o caso citado, como alterações anatômicas irreversíveis que impedem uma harmonia estética ou problemas sistêmicos do paciente que não permitem a longevidade desta prótese, seja jaqueta ou pivot.
Guimarães Menegale (1898-1965) foi um foi um intelectual brasileiro, que atuou como advogado, jurista, professor, escritor, poeta, jornalista e curador. Teve seu impacto na Odontologia com a publicação do artigo “Responsabilidade profissional do cirurgião-dentista”, em 1939.
Nesse artigo, o autor pauta seu entendimento sobre a natureza da Odontologia defendendo a obrigação de resultado a partir da consideração que:
Embora, no mesmo artigo o autor, contraditoriamente, coloca que é evidente que o compromisso contratual do profissional não pode consistir em restaurar a saúde agravada, mas em empregar todos os recursos disponíveis para esse fim, infelizmente o que se perpetuou no meio jurídico foi a visão mais conservadora e discriminatória em relação aos compromissos assumidos pelo cirurgião-dentista.
É necessário analisar a questão levando em consideração a contextualização temporal, visto que o artigo foi escrito na década de 1930. Assim, a Odontologia foi analisada sob uma óptica excessivamente tecnicista, remontando à sua origem pautada quase que exclusivamente na habilidade manual e na destreza técnica.
Nesse contexto, os cirurgiões-dentistas foram barbeiros, práticos e historicamente os cursos de Odontologia no Brasil seguiram o modelo norte-americano de independência da medicina. Essa visão turva focada apenas no dente, na boca e na lesão, se refletia e ainda reflete na percepção que a sociedade, incluindo os juristas, tem da Odontologia.
Sua narrativa disposta nos tópicos “Na Odontologia os processos patológicos são mais regulares e restritos” e “as doenças orais não têm relações que podem determinar desordens patológicas gerais” pode ser facilmente refutada com base na literatura científica atual.
De fato, cada vez mais a inter-relação da boca com o restante do corpo fica evidente. Há estudos que mostram existir correlação entre saúde bucal e lesões gástricas pré-cancerosas. Outros estudos demostram a correlação entre doença periodontal e diabetes, assim como é fato que a gengivite e a periodontite disseminam bactérias na corrente sanguínea, podendo causar sepses, endocardite infecciosa, infecção pulmonar, doença do fígado, dentro muitos outros distúrbios, inclusive colocando em risco à vida do paciente.
Dessa forma, considerando o estado atual do conhecimento, podemos afirmar que:
Embora os argumentos que culminaram com a Doutrina de Guimarães Menegale se mostraram perecíveis pelo tempo, ela ainda é influente nos dias atuais. No artigo “Responsabilidade civil do cirurgião-dentista: a doutrina em processos e o contraponto odontológico”, publicado na Revista da Associação Paulista do Cirurgião-Dentista, os autores realizaram um levantamento das citações dos doutrinadores presentes nos textos dos processos. Dos 67 casos analisados, Cavalieri Filho aparece em 18 casos, Rui Stoco em 7 casos, Guimarães Menegale em 4 casos e Kfouri Neto em apenas 1 caso.
Sem dúvidas, o trabalho “Responsabilidade profissional do cirurgião-dentista” é considerado um marco para a área odontológica. Entretanto, dado sua influência nos dias atuais, é necessário um olhar crítico quanto ao seu entendimento da Odontologia no qual foi disposta sua doutrina, considerando-se o momento histórico em que foi escrito e as mudanças no conhecimento técnico-cientifico até os dias atuais.
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