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Análise isotópica. Esse termo, por si só, já assusta e faz levantar da plateia 20% dos nossos ouvintes. Se você continuar lendo, vamos tentar o que uma colega chama de “versão de elevador”.

Vou me concentrar na antropologia e arqueologia forenses, pois o método tem aplicações multidisciplinares. A análise isotópica pode provar, por exemplo, que aqueles queijos e vinhos importados que você está guardando para o fim de semana são realmente originais dos locais registrados nos rótulos – ou não.

“Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” – assim disse Lavoisier, em 1777, explicando a transformação do oxigênio após suas experiências com combustão. Talvez não imaginasse o quão marcante e quantas vezes seria repetida sua frase – até para justificar plágio já ouvimos, mas vou deixar esse assunto para outra visita.

Então, pegue essa frase de Lavoisier e junte com outra de um filósofo alemão, igualmente popular: “Você é o que você come”, e chegamos ao nosso assunto.

Isótopos leves e pesados: apenas mais do mesmo

Suas células contêm elementos químicos como carbono, nitrogênio, oxigênio, enxofre, entre outros. Esses elementos possuem isótopos diferentes. Nesse ponto perdemos mais 10% da plateia, mas lembrem, tentaremos versão de elevador. Então, vamos em frente!

Isótopos são versões diferentes do mesmo elemento químico; a diferença é apenas o número de nêutrons, resultando em massas atômicas diferentes. Fomos longe demais?

Não se preocupe, vamos simplificar: chamemos apenas de isótopos leves e pesados. Então temos oxigênio, nitrogênio, carbono (…) leve e pesado.

E daí? Que diferença faz?

A diferença está em funções biológicas e ciclos naturais, como a fotossíntese, evaporação da água do mar para formar nuvens, precipitação dessa água pela chuva, transformações geológicas de acordo com a idade das rochas, e absorção de nutrientes ingeridos.

A partir da composição isotópica, pode-se ter informações sobre o local, pela composição do solo, altitude, latitude, longitude, e sobre a origem de nutrientes.

Você é o que você come

Pense bem: do que são formados seus cabelos e suas unhas? Seu filho está crescendo, e os dentes permanentes que estão erupcionando, são compostos de quê?

Colocando-os em uma lupa, vemos o esmalte e a dentina, depois a hidroxiapatita e o colágeno, e, olhando mais a fundo, temos cálcio, oxigênio, carbono, hidrogênio…. isótopos. Então, o que ingerimos é metabolizado e utilizado na remodelação óssea e na formação de tecido – cabelo, unha, dente, pele, tudo – e sua composição varia de acordo com sua dieta e localização.

A água ingerida por um argentino, um paraibano, um mineiro, é diferente da que se bebe no Rio de Janeiro. A mesma H2O, mas com variação isotópica. Da mesma maneira, a análise isotópica pode diferenciar onívoros de veganos, vegetarianos, e intolerantes a lactose, ou pessoas com dieta predominantemente marinha… e assim por diante.

E se compararmos estas informações extraídas de diferentes tecidos, podemos ir mais longe. A cronologia de formação do tecido analisado é importante para que se aponte corretamente a data da informação obtida.

Assim, lembrando que ossos se remodelam constantemente, podemos extrair informações dos últimos anos. Cabelos e unhas são formados constantemente, e nos fornecem dados dos últimos meses. Quando analisamos a ponta das unhas, obtemos informações dos seis meses últimos meses.

Já os dentes se formam na infância e adolescência, mas não há remodelação de esmalte ou de dentina primária. Então chegamos a dados de dieta e localização que permanecem para sempre registrados na dentição.

Desta forma, é possível reconstruir tanto a dieta quanto o histórico de mobilidade de um indivíduo – ao comparar a composição isotópica de esmalte, ossos e unhas, as diferenças sugerem mudanças em localização ou em padrão nutricional – uma ferramenta preciosa para a arqueologia.

E diversos outros pontos podem ser estudados apenas ajustando a ferramenta para focar no que interessa – proveniência de remanescentes humanos de escravos, em que momento o milho foi introduzido na dieta, momentos de escassez alimentar em um grupo (sinais de subnutrição), como o alimento era partilhado entre os indivíduos (como adultos/crianças, homens/mulheres, nobres/plebeus), prática do desmame, e até mesmo análise da dieta das mulheres através dos dentes decíduos formados, uma vez que a criança tem como substrato para desenvolvimento apenas o leite materno, formado a partir da dieta materna.

E para o perito?

Esta mesma ferramenta, pode ser ajustada para estudo de madeiras, animais silvestres, chocolates, queijos, vinhos, drogas, enfim tudo. Inclusive pessoas. A identificação humana tem na análise isotópica um excelente método auxiliar, para informações de proveniência, migração ou mobilidade, modo de vida, dieta, ou estresse nutricional incluindo subnutrição, anorexia e bulimia.

Remanescentes de soldados da Segunda Guerra foram estudados a partir da composição do esmalte dentário, permitindo diferenciar britânicos, japoneses e americanos.

Outro pesquisador contribuiu para a demanda de imigrantes ilegais nos Estados Unidos, estudando o esmalte dental de mexicanos. Indivíduo não identificado teve uma verdadeira leitura de sua dieta e histórico de todos os lugares por onde havia andado, através de análise multi-isotópica incluindo cabelos, unhas, ossos, e esmalte dental.

Imagine isso associado à aproximação facial forense, com possibilidade de divulgação direcionada! A partir da análise isotópica de brasileiros com dieta e residências declaradas pelos participantes, tivemos resultados surpreendentes, que mostraram o quanto podem ser diferenciados os participantes de acordo com faixa etária, fonte de água, e grau de urbanização.

Para uso forense da técnica, é necessário um banco de dados contemporâneos, que contenha informações sobre composição isotópica de diferentes elementos, em diferentes populações, para que se use como fonte de consulta.

A este propósito dedicam-se diferentes pesquisadores brasileiros atualmente, como o pioneiro Luís Martinelli, Gabriela Nardoto, e outros com quem tivemos imensa satisfação em trabalhar e aprender no Museu Nacional sobre esta incrível ferramenta, como Murilo Bastos, e Claudia Rodrigues-Carvalho.

Da esquerda para a direita :
Dente após extração, iniciando o preparo com limpeza em ultrassom; microtubo com amostra de esmalte, microtubo com fragmentos de dentina, após desmineralização e secagem.

Autoras

Juliana Emenes

Juliana Emenes

Graduada em Biotecnologia pela UFRJ

Mestranda em Ciências pelo Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA-USP)

Juliana Emenes

Rachel Tinoco

Doutora em Arqueologia (Museu Nacional – UFRJ)

Mestre em Odontologia Legal e Deontologia (FOP-UNICAMP)

Para ficar sempre antenado com os melhores assuntos da odontologia legal, acesse nosso blog AQUI.