É, caros colegas, o mundo mudou. A sociedade é extraordinariamente fluída e nosso comportamento hoje é completamente moldado pelas novas tecnologias. Se antes era a televisão a mídia que falava com as grandes massas, atualmente a Internet triunfa nesse posto e abre as portas para que nós, até então meros expectadores, sejamos os protagonistas na criação de conteúdo.
Inegavelmente, essa situação trouxe algumas questões que ainda estamos aprendendo a lidar. Como exemplo, podemos citar a superexposição da imagem, a noção de público e privado, a flexibilização das ideias, a alta velocidade na disseminação da informação e a manipulação das informações por meio das fake news.
Entretanto, com tantos avanços, cabe a reflexão: até onde ir na exposição da nossa imagem como profissional? Seria o código de ética retrógrado, considerando essas novas tecnologias? Quais impactos essa exposição nas redes sociais pode ter nossa atuação profissional? Por qual caminho seguir entre os meus interesses comerciais e imagem da Odontologia perante à sociedade?
Assim, para trazer uma discussão sobre esse assunto, apresento abaixo algumas reflexões a partir do conteúdo de um artigo escrito por mim e mais dois grandes colegas, o Dr. Gustavo Barbalho Guedes Emiliano, Professor de Ética, Legislação e Odontologia Legal do Departamento de Odontologia da UERN, e o Dr. Thiago Leite Beaini, Professor de Ética e Legislação, Professor de Odontologia Legal FOUFU/MG.
Primeiramente, é importante deixar claro que qualquer cirurgião-dentista pode e deve desenvolver habilidades para publicar conteúdo nas redes sociais. É do interesse da sociedade saber quem são os profissionais, conhecer as técnicas e os cuidados que se deve ter com a saúde bucal, e não há nenhum impedimento legal e ético nisso.
Entretanto, as redes sociais estabelecem uma comunicação direta entre as pessoas, isto é, sem intermediários. Justamente por essa facilidade, pode parecer à primeira vista que são os usuários que definem os próprios limites. Como resultado, tornou-se esse território uma terra de ninguém, onde se pode dizer o que quiser sem sofrer consequências, ultrapassando os limites entre os interesses próprios, deixando de lado a ética em preservar a imagem da profissão perante a sociedade.
Como conclusão, vemos que o problema não é o uso das redes socais, mas sim o que fazemos com ela.
Muito se falava em 2018, quando o artigo foi publicado, sobre a flexibilização do Código de Ética Odontológica. Nessa ocasião, expomos nossa preocupação com relação à exploração da Odontologia a partir de um viés puramente comercial, deixando um vazio de conteúdo social, informativo e de promoção do bem-estar da população por meio da educação.
Afinal, devemos ressaltar que quem consome o que nós, dentistas, publicamos nas redes socais são, em sua maioria, leigos no assunto. Isto é, não conhecem detalhes, limitações, indicações dos tratamentos odontológicos. E aí que entra o perigo de conteúdos sensacionalistas, enganosos, ofensivo, com promessas de resultados garantidos.
Assim, o nosso entendimento, uma publicação fora do padrão ético, poderia:
– levar a uma interpretação equivocada da odontologia pela sociedade, reforçando estigmas historicamente associados ao processo de trabalho do cirurgião-dentista;
– contribuir com a percepção de obrigação de resultado no âmbito da responsabilidade civil;
– ameaçar o principal significado da odontologia no imaginário popular como profissão de saúde.
Nesse sentido, como então flexibilizar o Código de Ética Odontológica, mantendo a imagem da Odontologia perante a sociedade e ainda indo de encontro com os interesses individuais?
Na ocasião, trouxemos o conceito de think tank para a Odontologia. Essa é uma ferramenta destinada a produzir e difundir conhecimento para projetar, a partir de expertise objetiva, as alternativas, e seus prováveis efeitos, para problemas que cercam os cirurgiões-dentistas.
Entretanto, janeiro de 2019, o CFO, em uma decisão sem consulta prévia aos conselhos regionais, publicou a Resolução n. 196/2019. Esse documento trata em um terço de seu conteúdo sobre questões de publicidade e propaganda e, dentre outros aspectos, libera o uso de imagens de “antes e depois”, modificando o teor do Código de Ética Odontológica.
Para entender mais sobre o motivo dessa resolução ter sido tão polêmica, sugerimos a leitura do artigo PARADOXOS DA RESOLUÇÃO CFO N. 196/2019: “EU TÔ TE EXPLICANDO, PRA TE CONFUNDIR” publicada na Revista Brasileira de Odontologia Legal. Para acessar, clique aqui.
Veja as publicações abaixo, tiradas da conta do Instagram do CRO de São Paulo em dois momentos diferentes.
Publicação de 20 de julho de 2018 (antes da publicação da Resolução 196)
Publicação de 10 de junho de 2019 (após a publicação da Resolução 196)
Outro ponto que gostaria de chamar atenção dos nossos leitores é que o Conselho Federal, a partir do momento que libera o uso das fotos de “antes e depois”, acaba levando os profissionais a se exporem à riscos. Isso porque esse tipo de imagem pode contribuir com a percepção de obrigação de resultado no caso de uma ação judicial.
De fato, atualmente é preciso estar nas redes sociais. Entretanto, a resposta para a conduta do que se faz dentro delas está na ética, que adentra nas esferas da privacidade, do sigilo, da justiça e da mercantilização, etc.
Atualmente, política de privacidade é um assunto de primeira ordem. Dessa forma, acompanhando as discussões além das nossas fronteiras odontológicas, observamos o quanto as temáticas acerca da ética e da privacidade estão sob os holofotes a partir de notícias, por exemplo, de cyberataques que torna públicos dados sigilosos.
Não devemos ver com naturalidade a transformação da saúde em produto que venha ser explorado de modo puramente comercial. De toda forma, ou abraçamos a Odontologia baseada em princípios ou vamos pelo caminho da guerra. Entretanto, nesse caminho serão todos contra todos pela sobrevivência individual, tornando a nossa profissão meramente um negócio puro e simples, deixando de lado o seu caráter de promoção de saúde.
E, para concluir a reflexão, gostaria de ressaltar a responsabilidade dos profissionais para com a saúde do ser humano e seu papel na sociedade e relembrar os conceitos hipocráticos e bioéticos, do zelo que o cirurgião-dentista deve ter com o conteúdo que está sendo divulgado, sabendo onde começa e termina suas responsabilidades éticas, legais e administrativas.
Para ficar sempre por dentro de assuntos sobre a Odontologia Legal, acesse outras matérias de nosso blog.
Fonte: EMILIANO, Gustavo Barbalho Guedes; FERNANDES, Mário Marques; BEAINI, Thiago Leite. Ética odontológica: para onde devemos olhar em busca de soluções? RBOL-Revista Brasileira de Odontologia Legal, v. 5, n. 2, 2018.
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