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Inicialmente, como podemos estimar o tempo de morte em um cadáver?

A decomposição do corpo começa imediatamente após a morte. Porém, os sinais visíveis desse processo aparecem nas horas seguintes e a total esqueletização do corpo pode levar um tempo variável, o qual depende de inúmeros fatores como temperatura ambiente, umidade do ar, quantidade de chuva, vestes, exposição às intempéries, inumação ou imersão do corpo, extensão do trauma peri mortem, peso corporal e condições ambientais gerais. Tais elementos podem tanto acelerar, retardar ou modificar o processo de decomposição do corpo humano, dificultando a estimativa de um período bem definido para o tempo de morte, especialmente em cadáveres esqueletizados (Dix J e Graham, 2000; Iscan e Stein, 2013; Ferreira e Cunha, 2014). Além disso, muitos desses fatores relacionados ao tempo de decomposição variam geograficamente pois dependem diretamente das condições do local específico em que a morte aconteceu.

Quanto tempo o corpo leva para se esqueletizar?

O entendimento dos processos de decomposição cadavérica e do tempo que esse processo demanda é essencial na área forense, tanto para a estimativa do intervalo pós-morte, quanto para a reconstituição dos acontecimentos peri e post mortem (Ferreira e Cunha, 2014). O tempo necessário para um corpo se esqueletizar é variável, mas vemos na teoria a existência de trabalhos que apontam para períodos que vão de alguns meses até 2 ou 3 anos (Galloway, 1997; Iscan e Stein, 2013; França, 2017).

Na prática, quais as dificuldades em estimar esse intervalo pós-morte em esqueletos no Brasil?

Uma grande peculiaridade que enfrentamos hoje no Brasil é a escassez de pesquisas destinadas à estimativa do tempo pós-morte que tenham sido feitas de forma regionalizada. Muitos trabalhos de pesquisa publicados atualmente são baseados em observações realizadas nos países do hemisfério norte, o que exige cautela para aplicarmos em casos reais no Brasil, especialmente na região norte onde as temperaturas e a umidade são bem peculiares.

Além disso, a destruição do corpo por animais pode acelerar o processo de esqueletização e confundir peritos experientes quanto ao tempo de morte daquele cadáver. Além dos insetos e suas larvas, alguns outros animais podem participar da esqueletização se o corpo estiver a eles acessível, como os canídeos e alguns animais carnívoros, além de roedores, gambás e outros animais selvagens que podem causar danos aos tecidos do corpo e ajudar a espalhar partes dos restos mortais por uma área ampla (Dix e Graham, 2000; Iscan e Stein, 2013).

E o que de diferente temos nos rios amazônicos em relação a isso?

Os rios amazônicos possuem peixes necrófagos de grande voracidade que podem destruir substancialmente um corpo em poucas horas, com características específicas para as quais os peritos devem estar atentos. Dependendo da região do rio e do tempo em que esse corpo fica submerso, a ação da ictiofauna pode promover sua esqueletização completa.

A população da região usa o termo genérico “Candiru” para vários bagres carniceiros que se alimentam de carcaças de animais mortos e dos detritos sólidos que são espalhados no leito do rio, próximo às populações ribeirinhas. Esse termo inclui peixes de duas famílias distintas: Cetopsidae e Pimelodidae (Valente-Aguiar et al., 2020).

Quem são esses “Candirus”?

Os candirus da família Cetopsidae são peixes pequenos, com tamanho que podem variar entre 2 e 26 cm, mas que possuem hábitos alimentares vorazes, devorando um cadáver de dentro para fora em poucas horas, especialmente quando em grande número. Possuem um potente arsenal dentário especializado com um corte eficiente; as bordas dos dentes incisiformes são alinhadas, formando uma superfície pontiaguda quase contínua.

A família Pimelodidae também inclui peixes necrófagos, conhecidos como piracatinga ou urubu de água, nome bem sugestivo que faz referência à voracidade desses peixes. Eles consomem diversos tipos de alimentos e são fortes necrófagos, consumindo carcaças de animais mortos em algumas horas. Seu comprimento varia de 19-71 cm e estão entre as espécies de peixes mais comuns entre a ictiofauna cadavérica do Rio Madeira, em Rondônia.

1- Corpo encontrado apenas 17 horas após o desaparecimento, já esqueletizado e ainda articulado, tendo preservados porções parciais da pele, couro cabeludo, orelhas e globos oculares. 2- Pele do tórax com sinais circulares cortocontusos, compatíveis com ação dos “Candirus”, alguns perfurados e outros não.

Como esses pequenos peixes atuam para esqueletizar um corpo em horas?!

Esses pequenos animais produzem lesões características nos corpos que requerem atenção durante a necrópsia forense. São lesões cortocontusas circulares e ovais que são encontradas nas porções de pele e musculatura remanescentes, que representam os orifícios de entrada dos peixes no corpo, usados como acesso para a destruição das estruturas internas.

O Cetopsis coecutiens (Candiru-açu) geralmente executa ataques rápidos na presa; eles mordem, giram o corpo e retiram grandes nacos de carne, produzindo lesões circulares semelhantes às de saca-bocados. Eles retiram-se imediatamente com o tecido removido e, em seguida, voltam para outro ataque, mas não permanecem dentro do corpo. Em contraste, o Cetopsis candiru (Candiru-cobra) devora tecidos com um movimento giratório rápido semelhante ao de uma furadeira, criando pequenos orifícios na superfície externa para entrar no corpo, devorando-o de dentro para fora.

Após os ataques desse tipo de peixe, observa-se a preservação de partes específicas do corpo como couro cabeludo, orelhas, globos oculares e cartilagens, restando os ossos articulados entre si. São efeitos bem diferentes do fenômeno de esqueletização causada pela decomposição bacteriana tradicional, e essa diferenciação é importante para os aspectos médico-legal e criminal.

E na prática? Quais os desafios de um corpo esqueletizado pela ação da ictiofauna amazônica?

O Instituto Médico Legal de Porto Velho, ligado à Polícia Civil do estado de Rondônia, recebe frequentemente corpos resgatados do Rio Madeira, região norte do Brasil, os quais exigem atenção dos peritos durante a análise necroscópica pericial.

Um caso ocorrido em 2020 ganhou notoriedade. Um homem foi visto se banhando nas águas do Rio Madeira e, em dado momento, mergulhou e desapareceu nas águas barrentas. O Corpo de Bombeiros da região foi chamado e conseguiu localizar e resgatar o corpo após cerca de 17 horas do desaparecimento.

Na autópsia, verificou-se que o corpo estava já esqueletizado, ainda articulado, com preservação de globos oculares, couro cabeludo, orelhas, mucosa gengival e algumas porções tegumentares (foto I). Nessa pele observaram-se lesões cortocontusas circulares e ovalares, de tamanhos variados, semelhantes às produzidas por saca-bocados, compatíveis com a ação dos peixes amazônicos citados. Todos os órgãos internos das cavidades torácica e abdominal estavam ausentes, tendo sido devorados por esses peixes, levando o corpo à quase total esqueletização em apenas 17 horas!

Caso os peritos não estivessem atentos a todos esses sinais, o intervalo pós-morte poderia ter sido decretado de forma incorreta e as lesões circulares poderiam ter sido confundidas com outras injúrias, como as por projéteis de arma de fogo, por exemplo.

A identificação do corpo foi feita pelas características observadas na arcada dentária do cadáver, que foram comparadas com uma fotografia de sorriso da suposta vítima, permitindo a confirmação da identidade da vítima, o que possibilitou a liberação do corpo à família no mesmo dia.

A análise do corpo e de suas lesões foi feita de forma criteriosa e científica, estando os peritos atentos às diferentes ações destruidoras que podem incidir sobre o corpo afogado em rios da Amazônia.

Autores

Referências usadas do texto:

Dix J, Graham M. Time of death, decomposition and identification: an atlas. Boca Raton: CRC Press; 2000.

Ferreira MT, Cunha E. A decomposição cadavérica e as dificuldades de gestão dos espaços funerários.Antropologia Portuguesa 2014; 31(30-31):77-97. doi: http://dx.doi.org/10.14195/2182-7982_31_4.

França GV. Medicina Legal. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011.

Galloway A. 1997. The process of decomposition: A model from the Arizona-Sonoran desert. In: Forensic taphonomy: The postmortem fate of human remains. Eds. WD Haglund & MH Sorg. Boca Raton: CRC Press, 139–150.

Iscan e Stein, 2013. The human skeleton in forensic medicine. 3rd ed. Springfield: C.C. Thomas

Valente-Aguiar MS, Falcao AC, Magalhaes T, Dinis-Oliveira RJ. Cadaveric ichthyofauna of the Madeira River in the Amazon basin: the myth of man-eating piranhas. Forensic science, medicine, and pathology. 2020; 16(2):345-351. doi: 10.1007/s12024-020-00221-8.

Valente-Aguiar MS, Castro-Espicalsky TL, Magalhães T, Dinis-Oliveira RJ. Computerized delineation of the teeth and comparison with a smiling photograph: identification of a body skeletonized by cadaverous ichthyofauna action. Forensic Sci Med Pathol. 2021 Sep;17(3):517-521. doi: 10.1007/s12024-021-00384-y.

Fonte do caso e das fotografias:

Valente-Aguiar MS, Castro-Espicalsky TL, Magalhães T, Dinis-Oliveira RJ. Computerized delineation of the teeth and comparison with a smiling photograph: identification of a body skeletonized by cadaverous ichthyofauna action. Forensic Sci Med Pathol. 2021 Sep;17(3):517-521. doi: 10.1007/s12024-021-00384-y.

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