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Respeito ao cadáver nas universidades: uma reflexão.

E se a gente começasse a vida pelo fim? E se a morte fosse o início da nossa vida? Tem até um filme que materializou a vida começando de trás para frente: O Curioso Caso de Benjamin Button, em que o Benjamim nasce idoso e rejuvenesce à medida que o tempo passa.

Mas, não é disso que estou falando, em voltar no tempo. É sobre entender que a morte pode iniciar uma nova jornada e sem querer entrar em polêmicas e crenças espirituais, o objeto de fala aqui é meramente a matéria, ou seja, o corpo.

Você já imaginou quantos profissionais da saúde existem no Brasil? E qual a relevância deles na sua vida?

Talvez essa pandemia (Covid-19) tenha nos obrigado a refletir o quanto a saúde é essencial e um pouco mais sobre a importância e atuação deles, que engloba diagnóstico, tratamento, manejo, procedimentos invasivos, reabilitação etc. Médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, cirurgiões-dentistas, fonoaudiólogos, educadores físicos etc., cada um na sua área de atuação.

Mas, volta aí no raciocínio, não estou entendendo nada. Você falou da vida começar na morte e está falando de profissionais da saúde. Qual a relação disso aí? Vamos pensar um pouco no que une todos esses profissionais. O estudo do corpo humano.

E, como a gente estuda o corpo humano?

Através da morte e daqueles que são tão dignos, que nos emprestam a si próprios para contribuir com a nossa vida. Você um dia já parou para pensar sobre isso? Você doaria seu corpo para as instituições de ensino, para contribuir com a formação profissional das pessoas?

Foi isso que eu tentei entender no artigo Respect to the donated corpse in the view of dentistry and medicine students.

Eu tinha curiosidade em saber o que os próprios estudantes em formação na área da saúde (alguns claro, embora eu quisesse e ainda sonhe em estender essa pesquisa) pensavam a respeito desse tema e porque era um assunto rechaçado, algo que era percebido por mim enquanto aluna da graduação.

Eu ouvia piadas dos colegas sobre os corpos e também palavras que remetiam a um sentimento de pena, algo como “coitado deles por estarem aqui”. E, em mim, o sentimento era totalmente outro.

Eu pensava o quão digno era estar ali (o corpo), sendo tão relevante para mim para todos os profissionais que já passaram e os que passarão para aprender com eles e, finalmente, para sociedade que se beneficia desse conhecimento. E aquilo me inquietava.

Até que uma sábia professora, a quem eu tenho muito orgulho de ter sido aluna e uma das que mais admiro até hoje, pela sua postura ética, humana e apaixonada por Anatomia, percebeu meu interesse e me convidou para trabalhar no tema que seria a ética no estudo dos cadáveres.

Ah, tenho que mencioná-la aqui e agradecer o acolhimento que ela sempre me devotou, a professora Eliane Marques Duarte da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), instituição a qual hoje eu faço parte, como docente, infelizmente não da área de anatomia, mas quem sabe um dia? (risos).

E daí quando o “dono” do blog ao qual escrevo agora, meu parceiro e GRANDE amigo de longas datas, o Mário, me convidou para escrever, eu pensei logo de cara nesse trabalho. Minha mente viajou sobre outros, mas esse, embora tenha me orgulhado dos outros é, sem dúvida é o trabalho no qual o carinho é o maior.

Quando finalizei eu olhei e pensei: “eu consegui dizer nele o que eu queria ter dito”. Tenho, claro, que agradecer aos demais autores, que refinaram tudo e que possibilitaram ampliar as ideias e materializar a pesquisa: a professora Rachel Tinoco, minha inspiração de vida, a professora Maria Júlia, com a sua sensibilidade e os meus amados professores Daruge Jr. e o Fran.

Mas vamos ao que interessa que você já enrolou demais. Como eu já falei o título do artigo é “Respeito ao cadáver na concepção de graduandos em Odontologia e Medicina” e ele por si só fala sobre o que é a pesquisa.

Perguntamos aos estudantes…

E avaliamos se havia diferenças nas respostas deles sobre a importância da anatomia, se os preceitos éticos de respeito aos cadáveres eram passados para eles, se eles ouviam ou faziam piadas sobre as peças anatômicas e finalmente se eles doariam seus corpos para as universidades.

A grande maioria disse que não doaria e sobretudo pelas “piadas” que eram feitas, ou seja, pelo desrespeito que eles viam acontecer (mas que, curiosamente, quase ninguém relatou fazer) mesmo tendo sido ensinados pelos professores quanto ao respeito ao cadáver. Eles reconheceram que o estudo em cadáveres é de extrema importância e que não veem algo que possa substituir o corpo humano para o aprendizado da Anatomia.

Aí eu pergunto a você que está lendo: essa conta fecha?

Quantas e quantas instituições temos e quantos cadáveres vocês imaginam que estão disponíveis para estudo? Será que a demanda é suficiente? E, quando questionamos, ouvimos os mais diversos tipos de sugestões: “pega os corpos das pessoas que não têm família, dos moradores de rua, dos que não são identificados nos IMLs…”.

As pessoas nos sugerem muitas coisas que perpassam grupos vulneráveis, baixa condição econômica e queles que não tem quem responda por eles. Complicado, né? Por que é sempre o outro e não eu? Por que eu não me coloco como solução para um problema? O que as pessoas sabem sobre as normativas, sobre o que pode e não pode ser feito em termos de legislação sobre cadáveres e doação de órgãos humanos? Essa pergunta também foi feita no estudo e os próprios alunos não sabiam sobre o processo de destinação de cadáveres as instituições de ensino.

Então, vamos esclarecer algumas coisas.

Fora a doação voluntária, existe a Lei nº 8.501/1982 que diz que “o cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo de trinta dias, poderá ser destinado às escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico”.

Entende-se os não reclamados aqueles sem qualquer documentação ou quando identificado, inexistam informações relativas a endereços de parentes ou responsáveis legais.

Vale ressaltar que é proibida a destinação de cadáveres quando houver indício de que a morte tenha resultado de ação criminosa, ou seja, aqueles que precisam passar pelos IMLs.

Agora que talvez tenha ficado mais claro o assunto, tenha aumentado a preocupação com a defasagem entre a necessidade e a oferta, por isso o intuito de discutir o assunto buscando esclarecer as pessoas a grandiosidade de uma doação voluntária.

Nesse contexto, não podemos esquecer de citar a Lei dos Transplantes (Lei nº 9.434/1997), que versa sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, visto que os estudantes declararam o desejo e a vontade de fazer esse tipo de doação, entendendo-a como “salvar vidas”.

Vale lembrar que nela é vedada a remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoas não identificadas. Aqui, deixo claro que, nem só do corpo humano inteiro vive a Anatomia.

O estudo de peças ósseas individualizadas e tão importante ao conjunto corpóreo, o que aumenta ainda mais a necessidade de espécimes humanas. Indubitavelmente, concordo com os alunos quanto a prioridade em salvar uma vida, mas discordo da negativa de que doar seu corpo para estudo não salve vidas também.

Posso garantir ainda, que salva mais vidas

Uma vez que não é uma doação para um indivíduo, é para a coletividade. E, que fique claro que sou totalmente a favor da doação de órgãos, sendo declaradamente doadora.

Contudo, finalizo refletindo que se eu não puder doá-los para salvar alguém ainda com vida (ou melhorar a sua condição), eu quero sim que meu corpo comece uma nova vida, servindo aqueles que farão o nosso futuro na área da saúde.

Autora: Porfa. Dra. Laíse Nascimento Correia Lima
Laíse Nascimento Correia Lima
  • Professora de Bioética, Ética e Legislação Odontológica e Odontologia Legal da Universidade Federal da Paraíba
  • Mestre e Doutora em Biologia Buco Dental, em Odontologia Legal e Anatomia, ambos pela Faculdade de Odontologia de Piracicaba – UNICAMP
  • Especialista em Odontologia Legal – UNICAMP

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