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Identificação pela orelha: relato de um caso real!

Uma cabeça foi jogada em frente a um parque aquático.

Isso mesmo! Uma cabeça. Já passava das dez horas da noite. A rotina de visualizar as notícias nas páginas policiais buscando ver o que me reservava o plantão estava em andamento. As informações revelavam que era desconhecido o paradeiro do corpo. Esse resultado fora em decorrência da briga de facções que se instalara no ano anterior aqui no estado de Roraima. O local foi escolhido para afrontar os adversários por ser uma região de domínio da facção rival.

Os algozes ainda fotografaram e filmaram o ato que circulou nas redes sociais. Eram cenas de intensa agressividade e desprovidas de compaixão. A análise pericial já foi iniciada momentos antes de dormir. O vídeo mostrava um rapaz que tinha as suas mãos e os seus pés amarrados ouvindo outros homens justificarem os seus atos por vingança. A imagem permitia constatar pelo menos a presença de três homens, dois empunhando revólveres e uma arma longa, todas em direção da cabeça da vítima que recebia reiterados golpes.

A minha mente rememorava os golpes e as prováveis repercussões que encontraria no momento do exame pericial durante o caminho para o IML. Geralmente, estudamos o resultado lesivo analisando-o e relacionando-o com a energia vulnerante (a causa). O registro em vídeo permitia ter a causa e o ato (momentum). O capítulo de traumatologia forense1,2, em especial, as energias de ordem mecânica poderiam estar presentes neste caso.

Tínhamos uma decapitação, aguardando lesões corto-contusas.

Os golpes na cabeça poderiam gerar escoriações, equimoses, hematomas e fraturas tanto no neurocrânio quanto no esplancnocrânio, ou seja, em calota craniana e na face, sendo traumas produzidos por ação contundente. Restava, ainda, investigar se havia presente a ação de instrumento perfuro-contundente, pois a fotografia mostrava que armas de fogo foram utilizadas.

A cabeça apresentava diversas sujidades. Finalizada a higienização, foi possível observar a presença de diversas lesões em toda a face. Um abaulamento estava presente na região frontal direita, próxima do couro cabeludo. Escoriações distribuídas irregularmente pela face e equimoses de coloração violácea na região frontal em ambas as porções laterais. Uma ferida de bordos irregulares estava localizada na região fronto-zigomática direita, além de hematomas em ambas as regiões orbitárias e equimoses de coloração violácea. Havia, também, equimoses e escoriações na região mentual direita com aumento de volume e uma ferida extensa de bordos irregulares em região de corpo mandibular expondo o tecido muscular. Em norma inferior, toda a periferia da lesão descrevia bordos irregulares com continuidade à direita e interrompida à esquerda e à frente, desprovidas de conteúdo hemático, sugerindo que a decapitação se promoveu depois do êxito letal.

O abaulamento na região frontal apresentava uma rigidez sob a pele. A dissecação com o rebatimento de tecido epitelial expôs um material de coloração metálica, constando-se que se tratava de um projetil de arma de fogo (PAF) que foi removido, limpo somente com água corrente, deixado ao ar e posteriormente armazenado em recipiente próprio para o transporte. Realizada a tricotomia em região posterior da cabeça, verificava-se a presença de três feridas, duas conjugadas em região parietal posterior de bordos irregulares e limites de coloração acinzentada e a outra em região occipital esquerda, de bordos irregulares estrelados e voltadas para dentro. Uma ferida de bordos irregulares, evertidos foi localizada em pálpebra superior esquerda.

A ausência do corpo eliminava a possiblidade de identificação humana pela análise das impressões digitais.

Dessa forma, foi indicado o estudo odontolegal antes do encaminhamento de amostras biológicas para o exame de DNA. A entrada na sala de necropsia veio recoberta pela ausência de registros odontológicos. A família indicou o perfil do suspeito no Instagram. Nesta foto, a suposta vítima apresentava um “meio sorriso” expondo discretamente o terço médio dos dentes superiores anteriores. A impossibilidade de fornecer uma resposta para a família se aproximou. Porém, algo chamou a minha atenção: a orelha direita (relembre a anatomia da orelha externa).

A orelha já havia sido uma característica anatômica estudada por Alphonse Bertillon em 1893​3–8 ​. Em 1910, Evans palestra sobre ”um assunto digno de discussão” que poderia servir na identificação criminosa. Incomodava-se Evans com as várias afirmações sem fundo científico sobre a hereditariedade dos tumores na orelha. Assim, Evans estudou por anos as características da orelha observando que defeitos eram comuns, porém rara a presença de câncer.

Entretanto, observando o interesse dos criminologistas, sua apresentação destaca que enfatiza peculiaridade da orelha poderia servir como meio adicional na identificação de criminosos. O interessante relato ainda firma aos descrentes que se pudessem ficar na entrada de uma das estações do metrô em dia e hora de grande movimento, poderiam observar por si as diferentes orelhas da população9.

 

Em anos posteriores, as impressões das orelhas identificaram criminosos esclarecendo roubos a bancos, furtos em residências e homicídios na Polônia.

O estudo dos locais de crime verificou a presença de impressões das orelhas geralmente em obstáculos como portas e janelas. Esta prática investigativa teve início no final da década de 1960 na Polônia10.

O clássico literário sobre o estudo das orelhas é o livro “Ear Identification (Forensic Identification Series)”. A análise de mais de 10.000 orelhas verificou que não houve semelhança apreciável na configuração das orelhas. As bases morfológicas e uma metodologia de classificação estão presentes para serem usados no processo de identificação pela orelha11. Em estudos realizados na última década foi confirmado que até mesmo gêmeos idênticos possuem orelhas distintas5,12.

A morfologia única da orelha foi utilizada para a identificação de um detento decapitado quando ocorreu uma rebelião em uma prisão em Roraima.

O método foi utilizado na perícia de uma cabeça parcialmente carbonizada com diversos traumas. Desta forma, ficou demonstrado o uso seguro e confiável de outro método para identificação humana quando impressões digitais, arcadas dentárias e radiografias estão indisponíveis em casos de corpos altamente danificados ou mutilados8.

Assim, eu estava diante de uma cabeça desprovida de corpo e/ou prontuário odontológico nem fotografias que apresentassem informações dentárias suficientes para o confronto científico.

A orelha descrevia diversas características marcantes. Sua forma geral era retangular de limites arredondados semelhante a uma asa de borboleta projetada lateralmente. A curvatura superior da hélice se projetava como uma concha acústica e se recolhia na altura da região de tubérculo que nesse caso estava ausente. A hélice se recolhia de tal maneira que a escafa finalizasse seu sulco na altura do terço superior e a antihélice se projetava lateralmente com maior altura. Os ramos da antihélice descreviam um ramo superior largo quando comparado com o ramo inferior, gerando uma fossa triangular rasa, chegando a formar um abaulamento. O antítrago se projeta para baixo aumentando a área da concha que em decorrência da antihélice define uma profundidade acentuada. Em consequência, a incisura intertrágica se fazia aberta. O trago apresentava uma incisura superior descrevendo uma letra “S”. Todas essas características e o desenho periférico da orelha foram compatíveis com as imagens registras no exame pericial.

A identificação humana foi confirmada pela comparação científica das características da orelha.

A família foi comunicada sendo orientada a aguardar até que o corpo fosse localizado. Dois dentes foram removidos para o possível confronto genético. O corpo foi encontrado três dias depois sendo identificado pelas papilas digitais. Seis (06) pessoas foram presas e indiciadas pela participação no crime. Destes, dois eram menores de idade sendo julgados na Vara da Infância e Juventude, dois foram condenados a uma pena de 22 e 27 anos de prisão e outros dois suspeitos morreram durante o andamento do processo.

O caso exposto demonstrou como foi aplicado o estudo da traumatologia forense e como as características individualizantes da orelha foram usadas para a identificação humana. A perícia odontolegal não está confinada somente ao estudo dos dentes. A confirmação do óbito mesmo sendo difícil para os familiares interrompe o momento de incerteza, deflagrando o processo de luto. Essa certeza minimiza o dano psicológico reduzindo os sentimentos entre a esperança e o desespero.

Relato de caso de identificação pela orelha conduzido e relatado nesse blog pelo Dr. Gilberto Paiva de Carvalho

@drgilbertocarvalho

Doutor em Biologia Buco-dental | Anatomia

Mestre em Odontologia Legal e Deontologia

Especialista em Bioética

Perito Odontolegista IML/RR

 

 

 

 

Referências

  1. Carvalho GP de. Traumatologia forense. In: Daruge E, Júnior ED, Júnior LF, editors. Tratado de Odontologia Legal e Deontologia. 1st ed. Rio de Janeiro: Koogan, Guanabara; 2017. p. 626–63.
  2. Carvalho GP de, Bantim YCV, Freire AR, Rossi AC, Júnior ED, Prado FB. Fundamentos de traumatologia. In: Recchioni C, editor. Prática em Cirurgia Bucomaxilofacial. 1a. Belo Horizonte: Nativa Editoração; 2019. p. 709.
  3. Warren N. Earprints in identification. Med Leg J [Internet]. 1996;64:82. Available from: http://www.scopus.com/inward/record.url?eid=2-s2.0-0029686454&partnerID=40&md5=a368cf8171febf4c419cceeb5fdb0221
  4. Rubio O, Galera V, Alonso MC. Anthropological study of ear tubercles in a Spanish sample. HOMO- J Comp Hum Biol [Internet]. 2015;66(4):343–56. Available from: http://dx.doi.org/10.1016/j.jchb.2015.02.005
  5. Purkait R. Application of External Ear in Personal Identification: A Somatoscopic Study in Families. Ann Forensic Res Anal. 2015;2(1):9.
  6. Purkait R. External ear: An analysis of its uniqueness. Egypt J Forensic Sci. 2016;6(2):99–107.
  7. Verma P, Sandhu HK, Verma KG, Goyal S, Sudan M, Ladgotra A. Morphological variations and biometrics of ear: An aid to personal identification. J Clin Diagnostic Res. 2016;10(5):ZC138–42.
  8. Carvalho GP de, Bantim YCV. Inmates beheaded in a Brazil prison riot: Human identification by ear individual signs. J Forensic Leg Med [Internet]. 2019;68(September):101870. Available from: https://doi.org/10.1016/j.jflm.2019.101870
  9. Evans JH. The external ear as a means of identification. Trans Medico-Legal Soc. 1910;88–90.
  10. Kasprzak J. Identification of ear impressions in Polish forensic practice. Probl Forensic Sci. 2001;47:168–74.
  11. Iannarelli AV. Ear Identification (Forensic Identification Series). Fremont, CA: Paramount Public Company; 1989.
  12. Nejati H, Zhang L, Sim T, Dong G. Wonder Ears : Identification of Identical Twins from Ear Images. In: 21st Int Conf on Pattern Recognition. 2011. p. 1201–4.

 

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Foto de Ksenia Chernaya no Pexels